terça-feira, 12 de julho de 2016

Embaixada na Coreia do Norte

Por Oliver Stuenkel, Professor Adjunto de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas.


Post Western World, 11/07/2013 - Há quatro anos, em julho de 2009, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil anunciou a abertura de uma embaixada em Pyongyang, tornando o Brasil um de apenas 25 países com uma representação diplomática na República Democrática Popular da Coreia, mais conhecida como a Coreia do Norte. Na ocasião, muitos observadores (eu inclusive) criticaram a decisão, considerando-a errônea e perigosa. Porque o Brasil estabeleceria laços com o bizarro regime norte-coreano? Porque quereria mandar um recado tão estranho para a comunidade internacional? Parecia ser mais uma indicação de que o Presidente Lula estava absolutamente determinado a se juntar aos ditadores mais repugnantes do mundo.
Naquele momento, poucos sabiam que fora o Presidente Fernando Henrique Cardoso quem decidira abrir uma embaixada na Coreia do Norte, no contexto da Política do Sol sul-coreana para os norte-coreanos. A decisão foi aplaudida por líderes em Seul (a Política do Sol foi o nome dado à política sul-coreana para a Coreia do Norte de 1998 até 2008; foi articulada pelo Presidente sul-coreano Kim Dae Jung, e permitiu maiores contatos políticos e culturais entre as duas Coreias). Embora a decisão tenha sido tomada em Brasília no auge da reaproximação, a Embaixada só foi aberta em 2009, depois de a Política do Sol ter sido considerada como um fracasso pelo Sul.
Contudo, o Brasil decidiu seguir em frente, quatro anos após a Coreia do Norte abrir sua própria representação em Brasília. Desde então, o Brasil foi o único país da América do Sul a abrir uma embaixada em Pyongyang (o único outro país no Hemisfério Ocidental é Cuba). Há outros países com Embaixadas na Coreia do Norte que são, em sua maioria, asiáticos ou do Oriente Médio (13 países, incluindo a China, a Rússia, a Mongólia, a Indonésia, a Síria e a Palestina). Da Europa, são 7 países, incluindo a Alemanha, o Reino Unido, a República Checa e a Suécia. Fica claro que muitos países importantes não se dão ao trabalho de manter uma representação em Pyongyang.
Mesmo assim, Pyongyang não é propriamente um posto muito cobiçado entre diplomatas. O Japão e a Coreia do Sul, ambos importantes parceiros econômicos para o Brasil, têm aumentado as críticas contra as tentativas de qualquer país de engajar-se com a Coreia do Norte. Então, será que vale mesmo o esforço? O Ministro das Relações Exteriores Antonio Patriota tem repetidamente enfatizado a importância de se manter uma presença em um dos regimes mais isolados do mundo, de maneira a garantir o acesso à informação em primeira mão.
É óbvio que ele tem um ponto. Durante minha visita recente à Pyongyang, dei-me conta do quanto a mídia internacional é mal-informada sobre a situação real na Coreia do Norte. Nenhum país com ambições globais, tal como o Brasil, pode se dar ao luxo de contar com informações em segunda mão, impossíveis de serem verificadas, e em uma das mais complexas situações políticas do mundo.
Um exemplo torna isso claro. Apesar de periódicas e crescentes tensões amplamente relatadas no exterior, uma temporada em Pyongyang permite a qualquer observador apreciar as pequenas mudanças que estão a ocorrer na sociedade norte-coreana. Quando o primeiro embaixador do Brasil na Coreia do Norte chegou ao posto em 2009, ele teve de entregar o seu telefone celular no aeroporto. Quatro anos depois, os agentes alfandegários mal se deram ao trabalho de revistar as minhas malas, e eu entrei no país com vários aparelhos eletrônicos, inclusive o meu iPhone. Os estrangeiros podem comprar e usar cartões SIM, e muitos norte-coreanos podem ser vistos conversando através de seus celulares em Pyongyang (embora estrangeiros e residentes ainda precisem usar redes separadas e não possam fazer ligações entre si). Atualmente, há dois milhões de usuários de celulares no país.
Embora quase não houvesse empresas privadas há apenas alguns anos, pequenos mercados foram surgindo em toda a cidade. Durante uma caminhada à noite ao longo do Rio Taedong, encontramos pequenos comércios vendendo bebidas e sorvete. Os diplomatas podem andar livremente na cidade (suas casas, no entanto, certamente estão grampeadas). Há sinais de uma consciência crescente entre políticos norte-coreanos de que o modelo econômico do país é insustentável. Não há como estar informado sobre esses fatos sem ter-se uma embaixada no país, especialmente no caso da Coreia do Norte, que é de difícil acesso aos observadores independentes.
Nada disso pode justificar os abusos de direitos humanos e o papel da Coreia do Norte como um encrenqueiro internacional. O mundo precisa continuar a pressionar a liderança norte-coreana para que tratem dessas questões e ajudem a diminuir as tensões na região. Mas isso não pode ser feito de modo eficiente sem que se compreenda a situação atual e sem que se promova o contato individual entre estrangeiros e norte-coreanos. É um desafio à imaginação como os Estados Unidos podem seriamente buscar compreender o regime norte-coreano sem que haja uma presença diplomática no país.. Atores emergentes tais como o Brasil estão certos em estabelecer canais de comunicação que possam servir para vários propósitos no futuro, especialmente porque o destino da Coreia do Norte pode ter um forte impacto sobre a situação geopolítica da Ásia, que é intimamente ligada, por sua vez, à ascensão da China, o mais importante parceiro comercial do Brasil.

Uma conversa na Escola de Ciências Agrícolas de Pyongyang serviu de lembrete, particularmente forte, de quão importantes, e pouco explorados, são os intercâmbios pessoais com estados párias como a Coreia do Norte. Quando me apresentei aos meus interlocutores, ambos pesquisadores, pareceram embasbacados ao descobrir que eu trabalhava em uma instituição que não fazia parte do governo. Eu repeti várias vezes que era um órgão privado, e me olhavam com incredulidade. No final das contas, colocar os cidadãos norte-coreanos em contato com o mundo exterior pode ser uma pequena, porém, importante contribuição para ajudar na lenta abertura de um dos regimes mais isolados do mundo.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

CARTA CIDADANISTA


NÓS SOMOS MUITOS e MUITAS. Feminino e masculino juntos. Brasileiras e Brasileiros. De todas as cores e identidades, gêneros e transgêneros. Índios, negras, brancos, amarelas, pardos, mamelucas, cafuzos, mestiças. Somos estudantes, trabalhadores, aposentados, empreendedores, jovens, anciãos, adultos, crianças.
Somos migrantes, viemos de todos os lugares, de todos os continentes, das cidades, das florestas, dos campos, das montanhas, dos rios, dos litorais. Somos diversidade, mistura, inclusão e exclusão, visíveis e invisíveis, desabrigo e acolhimento. E não paramos de chegar: haitianos, bolivianos, africanos de várias nações, chineses, sírios, gente de todas as partes.
Aqui estávamos quando outros vieram, aqui chegamos quando outros estavam, atravessamos oceanos e nos mesclamos. Estamos nas fábricas, lojas, escolas, oficinas, terras, ruas e redes; somos batalhadores, sonhadores, criativos, sofredores, esforçados, solidários, precários, inventivos. Vivemos, criamos, produzimos, inventamos, consumimos, desejamos, amamos, queremos, podemos. Tudo passa por nossas mãos, corações e mentes, até aquilo que não será nosso, até aquilo que não queremos; também aquilo que queremos e aquilo que, apesar de não conhecermos, também queremos.
SOMOS MUITAS. E somos quem sustenta as minorias que se sustentam das maiorias. Darcy Ribeiro dizia: “o Brasil sempre foi, ainda é, um moinho de gastar gentes. Construímo-nos queimando milhões de índios. Depois, queimamos milhões de negros. Atualmente, estamos queimando, desgastando milhões de mestiços brasileiros, na produção não do que eles consomem, mas do que dá lucro às classes empresariais”. Mas não só gente. Gastamos nossa fauna e flora, terra e água, nossa vida.
SOMOS MUITOS, mas nossa vontade não é respeitada. Somos a multiplicidade que produz, mas a riqueza que produzimos não é dividida. Somos os que mais pagam impostos, mas eles não retornam na forma de serviços públicos de qualidade, com boa educação, boa saúde, boa segurança, boa moradia, bom lazer, boa cultura, bom transporte e boas cidades. Nem os bens e serviços que pagamos ao mercado nos são bem prestados. Falta fiscalização, falta qualidade, falta respeito. Somos os 99%. E estamos indignados.
Por isso fomos às ruas. Para espanto de todos, em meio ao asfalto, nasceu uma flor, uma flor com nossa cara, com nosso jeito, desencontrada, uma flor com a cara da multidão, singular e plural ao mesmo tempo; uma flor da revolta, da indignação, do nojo. Também uma flor da esperança.
Não nos escutaram. “Tanta coisa que não cabia em um cartaz”, tantas vozes em revolta, tanta gente junta, gritando do fundo da garganta, rompendo o silêncio. E ainda assim, não nos escutaram. Promessas vazias, ações paliativas; muita repressão, perseguições, provocações; manipulações, marquetagem, cooptações. E não nos escutaram.
Podem mudar os rostos, os gestos, partidos ou siglas, mas, ainda assim, seguem sendo os mesmos a mandar e a tirar do povo. E quando outros rostos ganham força política, logo se procura abafar a voz ou cooptar as mentes. Sempre para servir aos que já mandam; é o que o país assiste de forma escancarada e cínica nas relações promíscuas entre casta econômica e a casta política. E assim, nossa democracia é sequestrada pelo dinheiro, corrompida pelo poder e distorcida pela ignorância.
Definitivamente: Não nos escutaram! E continuam não escutando. As eleições de 2014 foram um jogo de ilusões. Ideias vazias, promessas vãs, mentiras e negociatas entre oligarquias. Independente de partido, o que tem havido a cada eleição, desde sempre no Brasil, tem sido o uso despudorado do poder e mesmo da democracia para favorecer privilégios econômicos e políticos. Nunca uma democracia real, jamais uma democracia com justiça, sempre os mesmos senhores.
Em que pese o processo de relativa estabilidade econômica e inclusão social desencadeado no Brasil nas duas últimas décadas, este período também teve um forte sentido regressivo, com diminuição do patrimônio público e da biodiversidade, aumento do endividamento do Estado, precarização do trabalho e, sobretudo, redução do horizonte utópico. O acesso aos bens de consumo individual não foi suficientemente acompanhado da oferta de serviços públicos de qualidade e muito menos no fortalecimento de valores como a solidariedade e a sustentabilidade. Confundiu-se inclusão social com consumismo, abandonando a ideia de emancipação.
Por isso, não buscamos o poder pelo poder, nem pretendemos nos alienar na disputa por aparatos, sejam associações de moradores, sindicatos ou aparelhos do Estado, em que o poder deixa de ser um meio de transformação da realidade para tornar-se um fim em si mesmo. Para corresponder às expectativas da sociedade, não queremos repetir os modelos organizativos do passado; queremos horizontalidade e interatividade nas instâncias deliberativas, garantindo o efetivo empoderamento social para uma nova forma de fazer política. Daí a necessidade de um novo ator político que se comunique com a “linguagem comum das ruas”, que se construa a partir das propostas e reivindicações que surgem das mobilizações sociais, ambientais, culturais e políticas, com a participação livre e aberta a qualquer cidadão.
O reconhecimento desta pluralidade não implica uma postura conciliatória em relação aos setores que estão comprometidos, de diferentes formas, com a manutenção do sistema de exploração e domínio em vigor, seja pelo controle ideológico, econômico ou político. Esta dominação é articulada pela aliança escusa entre grandes corporações econômicas, midiáticas e financeiras e os partidos e governos que lhes são subalternos. Por isso é necessário romper com falsas polarizações e buscar uma alternativa real e concreta de transformação social. E para já!
A alternativa necessária ao modelo vigente de globalização é a construção de uma cidadania planetária, que promova a cooperação e a solidariedade, onde prevaleçam a identidade e os interesses dos povos, a eliminação das desigualdades socioeconômicas e o intercâmbio de toda diversidade cultural. “Estamos convencidos de que a mudança histórica em perspectiva provirá de um movimento de baixo para cima, tendo como atores principais os países subdesenvolvidos e não os países ricos; os deserdados e os pobres e não os opulentos e outras classes obesas; o indivíduo partícipe das novas massas e não o homem acorrentado; o pensamento livre e não o discurso único” (Por uma outra Globalização – Milton Santos). Esta alternativa pode acontecer em processo lento ou mais rápido, a depender do grau de consciência e ativismo social, e está relacionada ao próprio futuro da vida no planeta, pois, independentemente da nacionalidade, somos todos habitantes de um mesmo lugar: o planeta Terra.
Há que mudar a lógica do Sistema. “Os de acima abaixo e os de abaixo acima”, para que, em uma democracia real, o povo mande e os governos obedeçam. Ou assumimos este objetivo com coragem, clareza e determinação ou jamais mudaremos. E há exemplos de que pode ser assim. Dos zapatistas no México à democracia direta na Islândia e o municipalismo libertário, ecologista e feminista em Rojava, no Curdistão Sírio. As experiências das novas formas de Partido-Movimento, surgidas dos movimentos dos acampados e indignados na Europa. Há também novas inflexões no modo de governar, com coalizões programáticas e pautadas nos princípios da cidadania. E os exemplos de nossos vizinhos na América do Sul: a cidade de Medellín, na Colômbia, antes conhecida pelo cartel das drogas e hoje reconhecida como a cidade mais inovadora do mundo; o protagonismo popular e indígena na Bolívia e Equador assegurando os direitos da Mãe Terra; o Uruguai da revolução tranquila.
O mundo todo está atento às novas formas de organização política, vinculados a movimentos desgarrados dos velhos aparelhos, representando novos ativismos, com uma práxis renovada e horizontal. Por isso, convidamos as pessoas empenhadas na busca por um “outro mundo possível” que se unam no esforço pela construção de uma alternativa política ampla, diversa e singular ao mesmo tempo. A construção de um Brasil a serviço de seu povo. O Brasil que queremos, podemos e faremos.
ÁRVORE
Sementes, RAiZ, Seiva, Tronco, Ramos, Folhas, Flores e Frutos
SEMENTES
Nossas sementes definem o que seremos e como iremos brotar. Sementes escolhidas, cultivadas pelos que nos antecederam e que agora misturamos em amálgama, seja em nossos corpos ou pensamentos. A partir de um método aberto e interativo para a construção de uma linguagem comum, formamos um pensamento novo, tendo por base as nossas sementes como povo. Como o ameríndio, o africano e o europeu são parte constitutiva de nossa gente, tornando-se povos-matriz dos brasileiros, os escolhemos como sementes originais para nossa RAiZ; mas seguimos abertos a nos fundir em novas sementes, como a filosofia oriental e mesmo os pensamentos que estão por vir. Nós somos o que fazemos de nós, por isso, para além de um povo "em si", um povo que "é", independente de ter que refletir sobre "quem é", "como é" e "para quem é", buscamos dar um salto evolutivo para nos tornarmos um povo "para si". Um povo que se faz povo em ato consciente. O que propormos é, em um gesto cultural, político e afetivo, selecionar entre nossos povos-semente, aquilo que de melhor se produziu em termos de pensamento, ética e filosofia: Teko Porã, Ubuntu, Ecossocialismo.
TEKO PORÃ – Bem Viver
BEM VIVER, conceito político, econômico e social que tem por referência a visão dos povos originários da América: SumakKawsai em quéchua; Suma Qamaña em aymara; Tekó Porã, em guarani. É uma filosofia que está na nossa alma original e significa viver em aprendizado e convivência com a natureza. Somos “parte” da natureza e, para nossa própria sobrevivência como espécie, há que romper de uma vez por todas com a ideia de que podemos continuar vivendo “à parte” da natureza.
Conforme nos ensinam os povos tradicionais, a terra que nos acolhe tem que ser protegida, pois o mundo é povoado de muitas espécies de seres, também dotados de sentido e consciência, em que cada espécie vê a si mesma e às outras espécies a partir de sua perspectiva. Esta sabedoria, reconhecida nos povos do Xingu e presente em todas as culturas ameríndias, nos leva a compreender que a relação entre todos os seres do planeta tem que ser encarada como uma relação entre sujeitos, fundindo cultura e natureza.
O Teko Porã se afirma no equilíbrio com o Planeta e no conhecimento ancestral dos povos originários. Conhecimento nascido da profunda conexão e interdependência com o ambiente, a vida em pequena escala, sustentável e equilibrada, é necessária para garantir uma vida digna para todos e a sobrevivência do planeta. O fundamento do Teko Porã está nas relações de produção autônomas e autossuficientes. Ele também se expressa na articulação política da vida, através de práticas como assembleias locais, espaços comuns de socialização, potencializando espaços públicos e comunitários, como parques, jardins e hortas urbanas, pontos de cultura, cooperativas de produção e consumo, e das diversas formas do viver coletivo e harmonioso. Também guarda correspondência ao histórico desejo de emancipação e unidade dos povos latino-americanos, expressas na utopia da Pátria Grande (Abya-Yala).
Somente podemos entender Teko Porã, ou Bem Viver, em oposição ao “Viver Melhor” ocidental, que explora o máximo dos recursos disponíveis até exaurir as fontes básicas da vida. Assumir esta cosmovisão é se contrapor à iniquidade própria do capitalismo, onde poucos vivem bem em detrimento da grande maioria. O produtivismo e consumismo, desenfreados e fúteis, somente se mantêm devido à exploração predatória dos recursos naturais e só servem à ganância de poucos. Este modelo não é sustentável e, inevitavelmente, levará a humanidade ao colapso civilizatório.
O planeta não pode mais seguir em desequilíbrio, por isso afirmamos um modelo de vida mais justa, ambientalmente sustentável, economicamente solidário, que deve ser buscado simultaneamente pelo Estado e pela Sociedade. Queremos uma vida digna, em plenitude, cheia de sentidos, em que o SER seja mais importante que o TER. Em que ESTAR no Planeta seja muito mais que um contínuo sugar da vida alheia, assegurando os direitos da Mãe Terra (Pachamama, Tekobá) em nossa Constituição, como outros países já fizeram, garantindo a todos os viventes a satisfação de suas necessidades básicas, com qualidade de vida, o direito de amar e ser amado, o florescimento saudável de todos e em harmonia, o prolongamento indefinido das culturas, o tempo livre para a contemplação, a ampliação das liberdades, capacidade e potencialidades de todos e de cada um, sejam humanos ou não.
O objetivo é mais equidade. Em vez de defender o crescimento contínuo e a qualquer custo, buscamos alcançar uma sociedade mais equilibrada; em vez de focar quase exclusivamente em dados relativos ao PIB ou outros frios indicadores econômicos, nos guiamos para alcançar e assegurar o mínimo vital, o suficiente para que todas as pessoas possam levar uma vida digna e feliz. Queremos medir o bem estar de nosso povo muito mais pela Felicidade Interna Bruta que pelo Produto Interno Bruto, afinal, conforme o Manifesto Antropófago: “a alegria é a prova dos nove!”.
Enquanto o capitalismo transforma tudo em coisa, até nossos corpos e desejos mais profundos, romper com esta lógica, com seu individualismo inerente, egoísmo e imediatismo, romper com a monetização da vida em todos os seus campos e com a sua desumanização é, para nós, o ato mais revolucionário e o redescobrimos junto aos nossos ancestrais ameríndios.
UBUNTU - “eu sou porque nós somos”
UBUNTU, palavra que vem da África e está presente em muitos idiomas daquele continente. Praticada desde os tempos imemoriais dos reis da Núbia, os faraós do alto Egito, há mais de 5.000 anos, a ética do Ubuntu representa o oposto do individualismo. Ubuntu é pertencimento à unidade, interdependência e colaboração, diálogo, consenso, inclusão, compreensão, compaixão, cuidado, partilha, solidariedade. “Eu sou porque você é”, “nós somos porque você é e eu sou”. Importa a dignidade de todos. Assumir Ubuntu é colocar emancipação humana e a cidadania em novos patamares.
Foram os Nobel da Paz, Desmond Tutu e Nelson Mandela que valorizaram e ressignificaram esta ética para o mundo contemporâneo.
“A minha humanidade está presa e está indissoluvelmente ligada à sua. Eu sou humano porque eu pertenço. Ele fala sobre a totalidade, sobre a compaixão. Uma pessoa com Ubuntu é acolhedora, hospitaleira, generosa, disposta a compartilhar. A qualidade dá às pessoas a resiliência, permitindo-as sobreviver e emergir humanas, apesar de todos os esforços para desumanizá-las. Uma pessoa com UBUNTU está aberta e disponível aos outros, assegurada pelos outros, não se sente intimidada pelos outros serem capazes e bons, para ele ou ela ter própria autoconfiança, que vem do conhecimento de que ele ou ela tem o seu próprio lugar no grande todo.” (Desmond Tutu, 1984)
“Um viajante em visita pela África do Sul poderia parar em uma aldeia sem ter que pedir comida ou água. Uma vez que ele para, as pessoas dão-lhe comida. Esse é um aspecto do Ubuntu, mas o Ubuntu tem vários aspectos. O Ubuntu não significa que as pessoas não devem enriquecer. A questão, portanto, é: Você vai fazer isso e permitir que a comunidade ao seu redor possa melhorar?” (Nelson Mandela, 1993).
Eles nos ensinaram que não vale vencer a qualquer custo, com sentimento de vingança ou de sobreposição de um grupo sobre outro. Por isso conduziram a superação do apartheid com reconciliação, mantendo a paz e a unidade entre os povos da África do Sul. Houvessem agido de outra forma e talvez a África do Sul estivesse em guerra até os dias atuais, espalhando mais infortúnios a um continente cujo povo tanto sofreu e continua sofrendo. Ubuntu é a cultura milenar da paz, pois para pessoas com Ubuntu jamais é possível estar bem se o entorno também não estiver bem.
Selecionamos a filosofia Ubuntu como uma de nossas sementes, por decisão política e compromisso com a construção de um pensamento que rompe com a lógica ocidental, de sujeito autocentrado e individualismo exacerbado. Também para descolonizar nossas mentes e corpos, assumindo outra perspectiva e adotando uma ética com origem na África e que está presente em várias manifestações da cultura popular brasileira: na roda de samba, na roda de capoeira, no jongo, nas cirandas. Rodas em que todos se olham sem hierarquias, em que a chave é a importância do acordo, da busca do consenso e da coesão.
Ubuntu também é referência para a comunidade do software livre, baseada no trabalho cooperativo. E nos ajuda a sonhar com uma democracia direta, participativa e colaborativa, em que as tecnologias da informação e da comunicação sejam colocadas a serviço da emancipação humana, de forma livre e aberta. Ubuntu é tradição e invenção ao mesmo tempo.
ECOSSOCIALISMO – quando o socialismo se encontra com a ecologia
ECOSSOCIALISMO, uma reflexão crítica que resulta da convergência entre ecologia, socialismo e marxismo. O capitalismo é insustentável, sua lógica de reprodução e lucro não prevê limites, extraindo tudo e todos à sua frente, incluindo sonhos. A seguir o atual modelo de consumo, o Planeta estará definitivamente exaurido em poucas gerações. Não temos o direito de seguir roubando o futuro dos que estão por vir. Para reverter este processo, o único caminho será uma Revolução Ecológica, cuja necessidade histórica parte de três premissas básicas:
a) estamos em meio a uma crise ambiental global e de tal enormidade, que a teia da vida de todo o planeta está ameaçada e com isto o futuro da civilização;
b) a crítica ao modelo capitalista vigente e ao consumismo predatório e desenfreado;
c) a crítica às revoluções sociais do século XX que tiveram por matriz ideológica o socialismo real, mas que apenas reproduziram o produtivismo predatório do modo capitalista de produção.
A proposta de uma Revolução Ecológica baseada no Ecossocialismo representa, ao mesmo tempo, o resgate dos ideais emancipatórios construídos na luta social e incorpora os valores de convivência solidária do Ubuntu e Teko Porã, com o sentido ético profundo do COMUM, visando a construção de uma cidadania ativa e solidária.
O atual sistema capitalista é incapaz de regular, muito menos superar, as crises que deflagra; isso porque fazê-lo implicaria pôr limites ao processo de reprodução do capital, uma opção inaceitável para um sistema baseado na acumulação sem fim. E assim estão matando o planeta, pois o sistema capitalista mundial é, na linguagem da ecológia, profundamente insustentável e, para que haja futuro, deve ser ultrapassado e substituído.
O ECOSSOCIALISMO passa pela formação de cadeias produtivas locais, aproximando produção e consumo em comunidades sustentáveis com distribuição equitativa da renda. No lugar de seguir subsidiando a indústria automobilística, com créditos e incentivos fiscais para um transporte individual, de baixa escala e poluente, o incentivo ao transporte público, limpo, de qualidade e eficiente. Trens e hidrovias integrando o Brasil; metrôs, bondes e ciclovias, em transporte seguro, rápido e barato; ônibus elétricos de nova geração, silenciosos e confortáveis, gerando a própria energia que consomem. Tecnologias sustentáveis para o saneamento básico, com água limpa e esgoto tratado para todos, em um Brasil em que ainda há muito por fazer nesta área. Em vez de grandes usinas de energia, destruindo rios e florestas ou poluindo a atmosfera com suas fumaças e radiações, unidades autossustentáveis, com matriz energética diversificada, limpa e renovável; até edifícios e casas podem produzir a energia que consomem, assim como é necessário estabelecer novos padrões de eficiência no consumo energético, bem como na geração, transmissão e distribuição de energia.
Com a Revolução Ecológica baseada no Ecossocialismo, decrescemos na concentração, na ostentação, no supérfluo, e crescemos apenas onde é necessário. Tudo isso gera riqueza, cria empregos, tecnologia, conhecimentos e solidariedade. Preserva e gera vida.
SEIVA
Seiva, o que circula dentro de nós, nosso sentido, a força que nos nutre.
A reconstrução dos sentidos do BEM COMUM
BEM, o bom, o justo, o belo, o ético; o conjunto de boas ações realizadas com humildade, coragem e sabedoria. Valor que deveria ser comum a todos.
COMUM, coletividade, cooperação, compartilhamento, comunhão, comunidade. O Comum nos une, nos relaciona, nos congraça, sugere o direito de todos, independente de posses, cor, credo, idade, gênero, sexualidade.
BEM COMUM, o uno e o múltiplo, o universal e o particular, o todo e a parte. A identidade intangível de nossa alma brasileira, expressa na generosidade da mescla entre culturas, no sincretismo de nossas crenças, nas festas que transbordam alegria e esperança. Bem Comum não é a soma dos bens particulares, mas o Bem de todos, em que o todo tem o dever com as partes, as partes em relação ao todo e as partes entre si. Refere-se à Justiça e à Ética, pois só há ética e justiça quando a finalidade é o Bem Comum, pressupondo solidariedade, cuidado com o “outro” e exercício da alteridade. É servir à comunidade em interesse mútuo, de reciprocidade. Bem Comum é a comunhão no Bem Viver.
Desde os gregos antigos, Bem Comum tem como fundamento a busca da “melhor vida possível”, transformada em uma “vida ativa”, de modo que as pessoas agissem de acordo com o que fosse melhor para a coletividade. O espaço para a realização plena do Bem Comum seria a cidade (Polis) e a forma de governo correspondente, a República, no sentido de “coisa pública” (no latim: res publica), tendo por alma a Politéia, o Poder Originário, que, para ser respeitado, precisa assegurar igualdade e justiça para todos, tornando-se um instrumento de defesa dos governados em relação aos governantes. Desta forma, o ato de servir (e não “se servir”) deve ser a causa mais nobre no exercício da Política. Não é o que ocorre no Brasil, a ponto de o jurista Fábio Konder Comparato escrever que: “a apropriação indébita do poder constituinte vem sendo praticada quase que cotidianamente pelos nossos governantes, a modo de um crime continuado. Os ladrões da soberania popular são, decididamente, cleptomaníacos políticos”.
Com o desenvolvimento do Estado-Nação capitalista o conceito de Bem Comum, como um valor compartilhado a partir do coletivo, foi paulatinamente substituído pelo de Bem Público ou Estatal. As experiências ditas socialistas do Século XX, igualmente, apenas aprofundaram esta consolidação do Estado no controle e direção da sociedade. A partir da década de 1980, com o Neoliberalismo, até mesmo as ideias de bem público ou estatal foram substituídas pela privatização absoluta, não mais havendo o sentido do Bem Comum, fazendo com que tudo e todos devessem se submeter à lógica do Mercado e aos interesses das partes, não mais do todo.
Água, bem vital, deveria ser o melhor exemplo de um Bem Comum, mas quando é transformada em fonte de lucro, em mercadoria, deixa de sê-lo. A saúde também deveria ser um bem de todos, pois não é ético nem moral admitir que pessoas sejam mais bem tratadas que outras em função de suas posses. Assim também com a educação, que deveria assegurar um ponto de partida comum e de qualidade para todas as pessoas. A cultura, diversa e realizada por todos e nas mais diferentes formas, nosso acervo de conhecimentos, expressões e significados definindo nossa identidade, também deve ser tratada como Bem Comum, e não como Bem de Distinção entre as pessoas. O conhecimento, a comunicação e a criação também deveriam ser livres, comuns, mas não são, assim como o direito à vida, pois, de todos os direitos, não há nada mais sagrado que este direito comum a todos os seres.
Bem Comum, tudo aquilo que tem uma dignidade própria, que deve servir a todos, que não se pode comprar nem vender, não sendo ético a sua transformação em fonte de lucro individual.
A vida e a cultura não podem ser privatizadas. Mas o capitalismo transforma tudo em mercadoria, patenteando até mesmo seres vivos, cadeias genéticas, sementes de alimentos, o acervo de conhecimentos, cultura e artes da humanidade; e seguindo em novas fronteiras de expansão, como o mapa genético e o espaço sideral, até gerar novos desafios éticos e de luta política.
A crise política, moral e ética que as sociedades contemporâneas atravessam, é resultado do abandono dos ideais do Bem Comum, que foram sendo substituídos por práticas privatistas, desde o campo econômico, social, cultural e político. Exemplos no Brasil: a lama mineral que destrói o rio Doce; a corrupção desmedida, escancarada, cínica; as negociatas com cargos públicos, leis e bens que deveriam servir a todos. Resgatar os sentidos do Bem Comum, portanto, é condição primeira para o bem-estar e a felicidade de toda sociedade.
Para reconstruir o sentido de Bem Comum, precisaremos de acesso livre e irrestrito às técnicas e conhecimentos. Várias delas estão já em nossas mãos, mas ainda é preciso democratizá-las, assegurá-las como um direito e lutar para que sejam expandidas, pois o acesso à informação e aos meios de comunicação tem que ser um direito humano fundamental. Também inclui o direito à cidade e à livre circulação nos espaços públicos, sem barreiras de qualquer tipo, sejam físicas, financeiras, culturais ou sociais, bem como a garantia de anonimato para os indivíduos, neutralidade em rede, transparência nos fluxos e controle de informações, liberdade de expressão e autodeterminação. E o direito à terra e à realização da reforma agrária, produzindo alimentos saudáveis, fortalecendo a agricultura familiar, a agroecologia, o respeito às florestas, águas e animais. Passa também pela redução da jornada de trabalho e luta contra sua degradação – que é também a degradação da existência - e pela criação da renda universal, a biorrenda, como a renda básica da cidadania, assegurada a todos.
Estamos vivendo a maior crise política, econômica e de valores pela qual nosso país já passou, a sua superação só acontecerá a partir da reconstrução dos sentidos e da efetivação do Bem Comum. Isto compreende fazer política com ética e tomar o Estado das mãos dos grupos econômicos e políticos, das oligarquias, novas ou antigas, que dele se apoderaram para garantir os seus interesses privados.
No atual estágio civilizatório, em que o Estado ainda é o maior concentrador e distribuidor de recursos, a gestão do Estado com plena participação da sociedade e resgate dos valores do Comum ainda se faz necessária. Mas o objetivo tem que ser a formulação e execução de políticas públicas em que o poder de controle do Estado, e do Mercado, sobre a vida das pessoas vá diminuindo ao mesmo tempo em que avança o poder dos Cidadãos e Cidadãs sobre o Estado e o Mercado. Há que disputar o Estado, mas em uma lógica invertida, que assegure a realização do Bem Comum e do Viver Bem para todos e isto só será possível a partir de uma Ação da Cidadania.
RAiZ
A partir de nossas Sementes, formamos um pensamento novo com o que de mais profundo e generoso foi criado a partir da cosmovisão, filosofia, racionalidade e magia de nossos povos matriz. Com elas ressignificamos os sentidos do Comum, que agora se expressa na AÇÃO DA CIDADANIA.
CIDADANISMO
Historicamente o conceito de cidadão, desde a Roma Antiga, passando pela Revolução Francesa, representava na prática a concentração de poder nas mãos de poucos. As mulheres, os escravos e, em sua versão moderna, os trabalhadores precarizados, estiveram, na maior parte do tempo, alijados da participação política. Somente por intermédio das lutas pela ampliação do direito de votar e ser votado é que, muito recentemente, o conceito de cidadão e cidadã se universalizou (em nosso país, até a Constituição de 1988, analfabetos não votavam). E ainda assim uma cidadania mutilada, em que os direitos não são universalmente garantidos. Também o processo de acumulação capitalista impôs uma concentração de riqueza nunca vista, onde cerca de 1% de todos os habitantes do planeta detém a metade de tudo o que é produzido. Com isto, a grande massa de explorados e oprimidos pelo Sistema é constituída por pessoas com direitos formais, mas sem direitos de fato.
O CIDADANISMO surge como a Ação da Cidadania buscando a efetividade de direitos. A universalização dos direitos da cidadania é o objetivo histórico do Cidadanismo e tal conceito está intimamente ligado à noção de soberania popular, estampada no parágrafo do primeiro artigo da Constituição Federal brasileira: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Mas se este poder é sequestrado por oligarquias que se apoderam do Estado para “se servir” e não “servir”, há uma contradição imediata que precisa ser solucionada para a plena realização da Cidadania.
A separação entre os poderes econômico, religioso e do Estado é condição primeira para a realização do CIDADANISMO com base na vontade popular. Por isso a necessidade urgente de uma reforma política, justa, democrática e cidadã, que coloque a política nas mãos das pessoas, acabando com o poder do dinheiro nas eleições e o abuso do poder, seja de governos, empresas, mídia ou igrejas. O CIDADANISMO pressupõe transformar e reinventar o exercício da política em processos solidários e cooperativos, criando um ponto de equilíbrio entre Vida e Sistemas. Para além, inclusive, de uma simples reforma eleitoral, buscamos participar da vida pública, na organização do espaço público e na construção da democracia nas esferas da produção, da vida e dos sentidos e não somente na esfera política, pois “um país não muda pela sua economia, sua política, nem mesmo sua ciência; muda sim pela sua cultura” (Herbert de Souza, o Betinho).
Da revolta que tomou as ruas e praças das grandes cidades no mundo, surgem novas propostas de organização que buscam reconfigurar o modelo de representação política e, mais que isto, buscando o real empoderamento das cidadãs e cidadãos por meio da democracia direta e da autogestão. O Cidadanismo também representa uma alternativa aos instrumentos tradicionais de participação política (partidos, sindicatos) que, ao longo do século passado, se apresentavam como a vanguarda, pretensos dirigentes da classe oprimida e explorada, mas que foram se burocratizando e acomodando no contato com o poder.
As novas estruturas do Cidadanismo devem ser dinâmicas e articuladas, movidas por deliberações em consensos progressivos, respeitando o indivíduo em sua integridade, conectando valores, sentidos e intenções em Redes Cidadãs de modo a constituírem espaços públicos em permanente construção. A partir deste movimento de reafirmação da participação cidadã na construção do Comum, as políticas podem se tornar efetivamente públicas e se desgarrar das ordens e desejos das Oligarquias.
Cidadanismo também é romper com a oligopolização dos meios de comunicação que, em conluio com a casta política e as oligarquias, interditam o direito de indivíduos e coletividades. Defendemos a liberdade de imprensa, a pluralidade de ideias e interpretações dos fatos, o livre acesso à informação, a polifonia; enfim, a comunicação como um direito humano e que deve ser assegurado para todos e não como meio de controle das oligarquias sobre o povo.
A AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA PÚBLICA, prevista na Constituição de 1988 e até hoje protelada, deve ser o principal meio para o controle cidadão sobre as contas públicas, hoje sequestradas pelo financismo, pelo rentismo e a corrupção. Enquanto impõe cortes em direitos sociais e políticas públicas, em 2015, o governo pagará R$ 500 bilhões em juros para uma dívida imoral, que representa o maior dreno de recursos públicos a que a sociedade está submetida Também defendemos um sistema tributário mais justo e progressivo, que taxe menos a renda e consumo dos pobres e mais sobre as grandes fortunas, heranças, propriedades especulativas, lucros exorbitantes e transações financeiras internacionais.
Cidadanismo é o respeito às diferenças, promovendo a igualdade de gênero e racial, com o resgate de dívidas históricas com as populações negras e indígenas e assegurando os direitos da mulher, combatendo todas as formas de preconceito e discriminação. É, igualmente, defender os direitos de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros, assegurando-lhes o direito a trabalho digno, ao casamento e à felicidade. Bem como, construir uma nova política de drogas, enfatizando-a como uma questão de saúde pública e não de polícia.
São direitos e são deveres; identidade e alteridade ao mesmo tempo. Uma cidadania emancipada só pode acontecer no encontro com a Educação de qualidade, motivadora; não uma “educação instrumental”, gerando “deficientes cívicos”, como bem apontou Milton Santos, mas que integra Educação e Cultura, formando consciências, multiplicando diferentes formas de viver, experimentando alternativas, informando, democratizando o conhecimento, respeitando as diferenças e fomentando a produção criativa. Uma educação que liberta e convida as pessoas a pensarem sobre sua realidade e sua emancipação. Será do encontro entre Cidadanismo e Educacionismo que colocaremos a Cidadania em um novo patamar.
Estas são as condições necessárias para o salto civilizatório que o mundo precisa. São metas ambiciosas e simples ao mesmo tempo. Pois é simples o que queremos. Queremos que o esforço coletivo seja revertido para o coletivo. E, para tanto, queremos participar, deliberar, acompanhar, fazer junto. Por isso ousamos uma nova cultura política no Brasil, em que o Ciddanismo será o pleno exercício da cidadania.
TRONCO
O que organiza e sustenta as ideias, o equilíbrio entre fluxo e estrutura, o Partido-Movimento.
PARTIDO-MOVIMENTO
Um partido de novo tipo, um PARTIDO-MOVIMENTO. Um partido que construa pontes para o diálogo entre os cidadãos e não atalhos para as castas dirigentes. Um partido que dialogue com os movimentos sociais, mas sem cooptá-los. Um movimento social e um partido político, ao mesmo tempo. E, também, um PARTIDO em MOVIMENTO, um Partido em Processo, evitando se fossilizar e se burocratizar. Um partido que se construa nas ruas e também nas redes que integram os “debaixo”, os legítimos donos do poder.
Nós nos recusamos a sermos transformados em mais uma engrenagem do jogo do poder. Rejeitamos as suas benesses e a profissionalização na política. “Política, a mais vil das profissões, a mais nobre das vocações”, como escreveu Rubem Alves. Não queremos alimentar castas políticas, que se autoconcedem aumentos sem consultar a sociedade, que só legislam e governam para se perpetuar no poder. O poder pelo poder não nos atrai, nem nos seduzimos por cargos em que o fim seja o próprio cargo, sem que ele seja um meio para melhorar a vida das pessoas.
Nossa lógica é outra. A busca da Potência, da capacidade de agir e transformar realidades, e que é inerente a todos os seres humanos. E de uma potência que se realiza com afeto e amorosidade, pois em um mundo que transforma tudo e todos em coisa, não há nada mais revolucionário que o amor à vida, o reconhecimento do “outro” e o respeito ao próximo.
Nossa esperança: Reencantar o mundo desencantado, tornando a política algo apaixonante, que toque o fundo de nossa alma e seja realizada com amor. Por isso buscamos força em nossas sementes mais profundas, resgatando nossa ancestralidade africana, ameríndia e europeia para constituir um novo ethos político, mestiço, como somos, e nascido da amálgama entre Ubuntu, Teko Porã e Ecossocialismo, reconstruindo o sentido do Bem Comum e apontando para a conquista da Cidadania Plena.
Nosso objetivo: uma Cidadania Plena que coloque o Poder a serviço do povo. Ao mesmo tempo, ativa, participativa e colaborativa. Uma cidadania que dispensa tutores e senhores.
Não é simples nem fácil, pois a ordem política vigente sequestra a democracia pelo dinheiro, distorce pela ignorância, controla pelo poder. Mas temos que reagir. O país não pode continuar elegendo representantes que logo eleitos já dão as costas ao povo, tramando acordos para ingressarem nas castas que até ontem negavam. Chega do “toma lá dá cá” da política, e de ministérios em que “metade não é capaz de nada e a outra metade é capaz de tudo”.
Mais que nunca, se quisermos enfrentar as contradições do Sistema, desnudando seus mecanismos e perversidade, há a necessidade de um Partido-Movimento, em que as pessoas comuns, quaisquer cidadãos, tenham capacidade e meios para interferir nos rumos da sociedade. Um Partido-Movimento para um novo patamar de democracia, formada por sujeitos autônomos, potencializados em Redes Cidadãs. Não um Partido PARA as pessoas, mas um partido COM as pessoas. Não um partido de Vanguarda, mas um partido de Retaguarda, de apoio. Nem só Partido e nem só Movimento dão conta dessas questões. Movimentos se perdem nas pautas pontuais e Partidos se perdem na alienação do poder. Daí a necessidade de unir ambos, em conceito e forma criando uma síntese entre pensamento e prática.
Um partido ao mesmo tempo amplo, horizontal, democrático e constituído por Círculos autônomos e protagonistas, que se cruzam numa rede sem hierarquia e, por meio do método dialógico, vão construindo unidades de pensamento e ação. Círculos como unidades de participação e respeito à diferença e à construção do Comum. Círculos temáticos (reforma urbana, política de drogas, ambientalismo, etc.), territoriais (por estados, cidades, bairros, comunidades, escolas, universidades, locais de trabalho) ou identitários (LGBT, indígenas, jovens, etc). Basta ter a iniciativa de criar um círculo e juntar pessoas para que ele seja criado.
A base para a semeadura de um Partido-Movimento como a RAiZ é a confiança. E a clara explicitação de princípios e valores, tais como: camaradagem e respeito ao próximo; horizontalidade nos processos decisórios; transparência; busca da coesão e harmonia do coletivo; colaboração; diálogo; busca da convergência; fortalecimento de atitudes de inclusão, compreensão, compaixão, cuidado e partilha; solidariedade. Um Partido-Movimento também pressupõe estar aberto à participação de filiados e não filiados. Mas declarar esses princípios e valores também não basta, pois é preciso contar com uma estrutura organizativa que expresse essas intenções, em que o espaço de deliberação, no lugar de uma direção piramidal, seja uma teia comum a todos os filiados e colaboradores. Esferas executivas, compostas de forma diversa, complementar e aleatória, de modo que seus integrantes venham de diferentes origens e formas de pensar, incluindo representações móveis e até mesmo o sorteio, bem como assegurando equilíbrio de gênero, etário, étnico e temático. Também há que cultivar o método do Consenso Progressivo, em processos paulatinos e acolhedores na construção da opinião coletiva.
RAMOS, FOLHAS, FLORES, FRUTOS
PLATAFORMA para um PROGRAMA COMUM
Optamos por definir primeiro nossas Sementes, Seiva, RAiZ e Tronco e agora fazemos um convite a todos os Coletivos, Movimentos e Atores Sociais sinceramente empenhados na busca de “um outro mundo possível”, para que iniciemos a construção de uma PLATAFORMA PROGRAMÁTICA interativa e comum. Um programa em construção permanente, incorporando olhares, propostas e reivindicações, antes isoladas e que agora podem se entrelaçar a partir do diálogo e luta comum, formando uma frondosa árvore, a ÁRVORE da CIDADANIA.
Nossa Árvore Comum
O Brasil é grande, rico, esta é a terra da diversidade, mestiçagem, da alegria. Temos energia, florestas, água, riquezas mil. Um bom povo, inventivo, trabalhador e solidário. Não é justo que sigamos nos maltratando, não é justo que sigamos nos enganando. A quem não acredita nesta possibilidade e se conforma com o amesquinhamento da política atual, há dezenas de partidos a escolher, bastando deixar tudo como está. Mas a quem deseja mudar de verdade, fazemos um convite à união. Sigamos juntos, unidos, com poesia e disposição para a luta.
São tão fortes as coisas, mas nós não somos as coisas e nos revoltamos, por isso nos fazemos poetas, como Drummond; e Solano Trindade, a quem dedicamos um poema grande como o Nilo; e Clarice Lispector, pois liberdade é pouco e o que desejamos ainda não tem nome; e Leminsk, adentrando na luta de classes com todas as boas armas: pedras, noite e poemas.
Somos de Pindorama. Somos Aymoré e a Confederação dos Tamoios. Somos Dandara e Zumbi e Palmares. Alfaiates, Inconfidentes, Republicanos. Somos a Confederação do Equador e Frei Caneca. Farrapos, balaios, praieiros e cabanos. José Bonifácio de Andrade e seu sonho pela amálgama Brasil, expulso da primeira constituinte do país por defender a libertação dos escravos, distribuição de terras e educação pública para todos, isso em 1824; Luis Gama, vendido como escravo por seu pai, tornando-se advogado sem diploma para fazer da causa de sua vida a libertação de mais de 500 escravizados, morto antes da Abolição, só em 2015 teve o título de advogado reconhecido pela OAB. Somos Malês, Caifazes e Abolicionistas. Dos Sertões, de Canudos, Contestado e do Caldeirão. Somos as revoltas de 22, de 24, a Coluna Invencível. Também a “muralha kaigang”, esquecida no baú da história. Anarquistas, comunistas e socialistas. Modernistas, antropofágicos, tropicalistas. Do Brasil urbano, do Brasil rural, do Brasil soberano. De Luiza Mahin, Anita Garibaldi, Pagu e Nise da Silveira. De Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes e Milton Santos. Da Cultura Popular e de Periferia, do Cinema Novo, do Teatro do Oprimido, da MPB. Das reformas de base, da resistência à ditadura, de 1968, da teologia da libertação, do Movimento contra a Carestia, da Anistia, das greves operárias. Diretas Já! A Constituição Cidadã. Os caras-pintadas, a estabilidade da moeda, a inclusão social. As Jornadas de Junho de 2013. Somos Guarani-Kaiowá. Toda esta história faz parte de nós. Somos nós.
E assim seguimos, unidos com ousadia, semeando, confiando, compartilhando. Por uma sociedade de mulheres e homens livres, de gente unida entre si e unida ao planeta. Um povo capaz e responsável por seus próprios atos. Livre, consciente, pensando por si mesmo. Conclama o Manifesto: UNI-VOS! Unimo-nos. E seguimos dizendo nas ruas: “O povo, unido, jamais será vencido!” Venceremos.
Venceremos porque Podemos. Podemos porque vamos à raiz dos problemas. E, por sermos RAiZ, nos propomos a pensar o Brasil de baixo para cima, pela radicalização dos processos horizontais e interativos, garantindo o efetivo empoderamento das pessoas numa nova concepção do fazer político. Nossas sementes são profundas e trazem à tona as mais elevadas expressões da ética africana, da filosofia ameríndia e da política ocidental: Ubuntu, Teko Porã e Ecossocialismo. Destas sementes parte a seiva, o Bem Comum a formar a RAiZ do Cidadanismo, forte, potente, generosa.
Foi no dia da mulher que nos afirmamos como RAiZ – Movimento Cidadanista, evocando o feminino no descobrimento de nossas práticas. Por isso pedimos para que nos chamem exatamente assim: A RAiZ, combinando com o gênero; não mais “o partido”, mas “a inteira”, de inteireza. Queremos um novo fazer político, enraizado no solo fértil das lutas por vida, pão, saúde, paz, conhecimento, ciência, trabalho, diversidade natural-étnico-cultural, sustentabilidade, arte e lazer. Que a força de nossas raízes alimentem o sonho, a ternura, a ousadia e a esperança.
Assim como os minerais, que são absorvidos pelas raízes das árvores, pedimos força para que possamos absorver o grito de indignação e a vontade de justiça. E lutaremos para transformar a realidade social desumana, degenerada, nociva, desigual. E que façamos juntos, entrelaçando raízes, articulando grupos e pessoas, movimentos e organizações, de maneira criativa e libertária, prospectiva e otimista. Não será fácil, sabemos que vamos enfrentar o solo infértil, as pedras, muito vento, às vezes com falta de água. Mas nossa essência, nossos sonhos e nossa luta transformarão essa nossa semente, que já é RAiZ, numa árvore forte, cheia de frutos e inspiradora para a tão sonhada transformação do nosso Brasil.
RAiZ que vai crescer. Primeiro os ramos, depois as folhas, as flores e por fim os frutos que há tanto esperamos. No mesmo momento que muitos preparam suas armas para defenderem o indefensável, nós germinamos da terra e vamos frutificar. Não há mais tempo a perder. Somos a maioria, mas nossos direitos seguem desrespeitados entre corrupções, ineficiências, desmandos e mentiras. O Planeta não pode esperar mais, há que dar um basta ao desmatamento que faz desaparecer rios e vidas. Precisamos de água boa, de rios e lagos e terras e ares limpos. Queremos viver em paz, andar nas ruas com segurança, descansar em Parques e Praças, ouvir música ao ar livre, teatro na rua; respirar arte, sentir arte, ser arte. Nossa vida pode ser melhor. Alimentos saudáveis, bom transporte, moradia digna, saúde e educação integrais para todas e todos. Não queremos muito, queremos apenas o que é nosso. São nossos direitos. Por isso queremos para já!
RAiZ – Movimento Cidadanista, por belas flores e bons frutos para um Brasil que vai brotar como nunca se viu!
São Paulo, 08 de Março de 2015
(Texto revisto para a Assembleia de Fundação da RAiZ – Porto Alegre, 22 de janeiro de 2016)

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Flusser e Baudrillard

Neste contexto de multiplicidade de imagens e de filosofias, dois teóricos são marcos no entendimento do papel de ambas como construtoras de um novo mundo globalizado. O primeiro, Vilém Flusser, especula sobre uma futura filosofia da fotografia em tempos em que a imagem técnica[3] torna-se onipresente e, do outro lado, o francês Jean Baudrillard indaga com a filosofia da imagem-simulação como construtora de um nova realidade. Essa escolha está na perspectiva de indicar as possibilidades do entendimento da imagem e da compreensão do tempo, nesse contexto de globalização.

Para Flusser:
"as imagens são superfícies que pretendem algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra lá fora no espaço e no tempo. As imagens são, portanto, resultado do esforço de se abstrair duas das quatro dimensões de espaço-tempo, para que se conserve apenas a dimensão do plano. Devem sua origem à capacidade de abstração específica que podemos chamar de imaginação." (Flusser 2002: 7)
Nessa mesma linha, ele nos fala sobre a imaginação:"imaginação é a capacidade de codificar fenômenos de quatro dimensões em símbolos planos e decodificar as mensagens assim codificadas. Imaginação é a capacidade de fazer e decifrar imagens." (Flusser 2002: 7). A imagem, portanto, seria nossa capacidade de imaginar, criar e decodificar o mundo à nossa volta, daí sua importância na caracterização da atualidade como construtora do conhecer, do saber, do prazer, da vida etc.

Entretanto, ao representar o mundo em seus mais diversos olhares, as imagens exercem o papel de mediadoras entre nós e o mundo, como se fossem mapas de um território, e essa mediação está cada vez mais por fazer do mapa um espaço mais importante do que o território em si. Flusser já alertava para essa proposição ao indagar sobre as imagens: "Imagens têm o propósito de representar o mundo. Mas ao fazê-lo, interpõem-se entre o mundo e o homem. Seu propósito é serem mapas do mundo, mas passaram a ser biombos." (Flusser 2002: 9)

Flusser, ainda, nos esclarece sobre o papel atual da imagem:
"Aparentemente, pois, imagem e mundo se encontram no mesmo nível do real (...) a imagem parece não ser o símbolo e não precisa de deciframento (...) O caráter aparentemente não simbólico, objetivo, das imagens técnicas faz com que seu observador as olhe como se fossem janelas, e não imagens." (Flusser 2002: 14)
Na conclusão do seu primeiro capítulo, Flusser resume o entendimento proposto até aqui:
"Ou seja, as imagens técnicas (e, em primeiro lugar, a fotografia) deviam construir denominador comum entre o conhecimento científico, experiência artística e vivência política de todos os dias. Toda imagem técnica deveria ser, simultaneamente conhecimento (verdade), vivência (beleza) e modelo de comportamento (bondade). Na realidade, porém, a revolução das imagens técnicas tomou rumos diferentes: ela não torna visível o conhecimento científico, mas o falseiam; não reintroduzem as imagens tradicionais, mas as substituem; não torna visível a magia subliminar, mas a substituem por outra. Nesse sentido, as imagens técnicas passam a ser "falsas", "feias" e "ruins", além de não terem sido capazes de reunificar a cultura, mas apenas fundir a sociedade em massa amorfa." (Flusser 2002: 18)
E é nesse processo geral de alterações e manipulações, seja para sensibilizar ou para esconder um detalhe fotográfico, que a imagem, hoje, processa um efeito mágico sobre a vida, principalmente as imagens fotográficas digitais. Assim, as imagens técnicas fotográficas digitais onipresentes em nossas vidas invertem sua proposta inicial de representar e passam a construir novos mundos. Sendo assim, nossa capacidade de imaginação torna-se alucinação (estamos entre biombos) e o homem fica incapaz de poder decifrá-las, isto é, decompor, como nas palavras de Flusser, as dimensões perdidas no ato de registrar a imagem fotográfica.

Essa abordagem sobre o papel da imagem técnica na atualidade e suas conseqüências frente à cultura são as intersecções que ligam os postulados iniciais de Flusser com as pesquisas filosóficas de Baudrillard. Para este, a abstração, conforme suas palavras adiante, já não é a do mapa, do duplo, do espelho ou do conceito:
"A simulação já não é a simulação de um território, de um ser referencial de uma substância. É a geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real. O território já não precede o mapa, nem lhe sobrevive. É agora o mapa que precede o território - precessão dos simulacros." (Baudrillard 1981: 8)
Neste mesmo ponto de encontro, Baudrillard considera que esse feito foi obtido através da proliferação desenfreada de imagens publicitárias na sociedade capitalista atual. Ele afirma que todas as formas atuais de atividades (economia, guerra, mídia, terror, violência, jornais, Internet, vídeos etc.) tendem para a forma publicitária de expressão. Nesse contexto, a imagem publicitária impôs-se a todas as outras formas de linguagem, fazendo até das imagens jornalísticas imagens de publicidade. Caracteriza-se aqui, tanto em Flusser quanto em Baudrillard, a dimensão de superioridade da simulação do mapa frente ao território.

Nessa perspectiva, a parte da imagem retirada ou adulterada pelos editores, no caso fotojornalístico aqui sendo analisado, passa a ser uma ponte para se avaliar e questionar o seu real valor frente ao contexto de terror no qual ela estava inserida. Sua adulteração e ou substituição, geram, igualmente, questionamentos sobre o papel das imagens como construtoras de realidades mais ou menos chocantes.

Toda essa construção tem como pedra angular a capacidade que a sociedade atual tem de criar e processar imagens a uma velocidade cada vez mais alta, fato hoje fundamental, se lembrarmos que há até bem pouco tempo, para se fazer uma fotografia era preciso uma quantidade relativamente bem maior de tempo entre a captação e sua distribuição visual. Esse tempo é hoje cada vez mais reduzido graças aos avanços das novas tecnologias digitais de captação, tratamento e distribuição de imagens fotográficas. Novamente, é nesse contexto que os entrecruzamentos das filosofias de Flusser e Baudrillard, ao distinguirem a relação da predominância do mapa simulado sobre o território, encontram um elo em comum na perspectiva do entendimento da imagem e do tempo como fatores culturais para a construção e a assimilação dessas imagens pelas sociedades atuais.

A perspectiva filosófica de Flusser busca, inicialmente, denunciar a possibilidade do fotógrafo tornar-se um funcionário do equipamento, o que ele chama de "caixa-preta", na tentativa de romper com a automatização cada vez maior dos equipamentos ao processar as informações. Para ele, o futuro da fotografia está na capacidade humana de ainda poder construir os mapas dos territórios e também intervir de forma presente nos processos de elaboração da imagem.

Do outro lado, a filosofia de Baudrillard fala-nos da perda de referencial trazida pelas imagens simuladas no contexto da sociedade atual. Em um texto publicado no Caderno Mais do Jornal Folha de S. Paulo, sobre o debate a respeito do estatuto ambíguo do fotojornalismo, Baudrillard assim se refere a essa ruptura com a realidade através da simulação:
"A partir do momento em que vivemos no tempo real, em que os acontecimentos desfilam como num "traveling" o tempo de reflexão sofre um curto circuito. A tela quebrou a distância entre o acontecimento o fato e a percepção (...) Com isso, comete-se uma violência com essas imagens de violência. Acreditar que as imagens possam testemunhar uma realidade é nutrir uma ilusão. A informação é uma zona fria que se recebe como tal. A imagem é uma representação além do real. É um objeto precioso quando nos damos conta desse déficit de realidade, quando é ao mesmo tempo presença e ausência." [4]
Tanto Baudrillard quanto Flusser compreendem, mesmo que de forma indireta, o papel do tempo e da cultura na construção da imagem da sociedade atual. Assim, atente-se que para Flusser estamos perdendo nossa capacidade, através da imagem técnica, de recodificar o tempo e o espaço abstraídos pelo processo de criação dessas. Nossa imaginação torna-se, então, alucinação frente a essa sociedade de simulação onde imagem e mundo se encontram no mesmo nível do real. Assim, a função da imagem técnica é a de emancipar a sociedade da necessidade de pensar conceitualmente. Já para Baudrillard essa emancipação tornou-se escravidão das simulações, na qual não podemos mais, devido ao curto-circuito entre o fato e sua percepção, termos o entendimento sobre esse. Tal crise decorre da caracterização do tempo como fator primordial na capacidade cognitiva de absorção e interpretação das informações visuais. É clássico o exemplo das mensagens subliminares como forma de sensibilização através de rápidas inserções.

Outros teóricos corroboram a questão do tempo como principal componente para o conhecimento. Kant postula que não há conhecimento sem o entendimento a priori da relação espaço-temporal, enquanto que para Piaget a criança só tem um conceito seguro em relação ao seu próprio corpo no espaço a partir do momento em que entende o tempo, e em decorrência, a velocidade, para só assim ter a capacidade de reconhecer a ela e aos objetos como entidades singulares.[5] Carlos Pernisa Júnior, em seu texto sobre imagem, velocidade e viagem, também identifica o papel preponderante do tempo na construção da imagem e da percepção sobre esta.
"A imagem é uma chave para se entender um pouco melhor a sociedade contemporânea... não procuramos fazer sua apologia e, de certa maneira, condenando mais seu uso do que sua natureza em si (...) É a tentativa de observar como a percepção humana se altera com o desenvolvimento de uma cultura baseada em alguns valores que se poderiam chamar de velozes. Toda a questão da informação passa por este sistema e principalmente o aparecimento e o aperfeiçoamento dos meios audiovisuais vão trazer uma série de conseqüências para aqueles que deles utilizam. Toda essa preocupação com um mundo veloz passa a atmosfera de uma sociedade que percebe as coisas de um modo bastante peculiar. Ao mesmo tempo dá também a idéia de como tudo anda mais rápido a partir de um contato com uma sociedade em que a aceleração e a própria comunicação de massa já antigiram um estágio mais avançado (...)." (PERNISA 1999: 143-156)
Sendo assim, esse autor dá importantes pistas sobre o papel da imagem, do tempo e da sua aceleração como construtoras de uma nova cultura na sociedade atual.

As indagações sobre a atualidade das sociedades contemporâneas, trazidas por Flusser e Baudrillard, são espaços teóricos que possibilitam o entendimento da globalização como forma de massificação e simulação, situações estas possibilitadas pela economia global, seja no que tange ao consumo, seja na mídia e na publicidade. A leitura no sentido de que quase a totalidade dos meios de comunicação usou, em princípio, a mesma fotografia do atentado ao trem espanhol, reflete o caráter globalizado com que a mídia trata as informações hoje em conformidade com os postulados de Flusser e Baudrillard sobre o consumo massificado da informação.

Porém, conforme abordado nas questões inicialmente aqui colocadas, qual o poder que o detalhe fotográfico trouxe à imagem e a sua conseqüente utilização ou não, no contexto acima exposto? Haveríamos de pensar que, apesar de ter a maior parte da fotografia (80%) globalizada, isto é, não alterada, houve na mesma foto um outro contexto, o dos (20%) do detalhe que não só suscitaram as discussões sobre seu conteúdo como também a presente reflexão.

As considerações teóricas apontadas por Flusser e Baudrillard parecem enfraquecidas quando entendemos a sutileza do detalhe (os referidos 20%) em romper com uma cadeia de aspectos massificados das mídias e da cultura na atualidade. Diante disso, há de se considerar a existência de outros fatores envolvidos nesse contexto que não só o caráter de globalização ou massificação da informação através da fotografia. Nesse sentido, as teorias que abrangem de uma forma mais completa e complexa a imagem, a mídia e a cultura são possíveis caminhos, tanto na perspectiva de se entender a importância do detalhe e dos questionamentos derivados, quanto para romper com o modelo fechado do simulacro baudrillardiano.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Relações Internacionais Século XXI

Perspectivas Teóricas e o campo das Relações Internacionais

O campo das Relações Internacionais vem sendo construído desde o século passado a partir de debates – e embates – teóricos persistentes, cuja dinâmica certamente está atrelada aos grandes movimentos históricos da política internacional. Assim, o chamado “primeiro grande debate” está pautado pelas guerras mundiais que convulsionaram o mundo na primeira metade do século passado, com destaque evidente para a I Grande Guerra. Idealistas – como escarneceram seus detratores -, os defensores do internacionalismo liberal buscaram refletir sobre as causas da(s) guerra(s) objetivando entender as condições possíveis para uma pacífica ordem internacional, embasada numa crença implícita acerca da moralidade e racionalidade humanas, que deveriam levar a humanidade a um progresso marcado por interesses nacionais mais harmônicos.

Tal utopia do internacionalismo liberal foi duramente confrontada com o realismo político, corrente bem mais afinada com as heranças intelectuais de Maquiavel e Hobbes para a qual a política internacional deveria ser mais bem vista como um tipo de “estado de natureza”, diante do qual nenhuma moralidade fazia frente a uma inevitável luta dos Estados por seus próprios interesses – e naturalmente, pelo poder. Se a lógica da balança do poder – mecanismo segundo o qual os poderosos conservam seu status quo contendo as nações que desafiam a configuração política em vigor – caracteriza as relações internacionais, as guerras não seriam uma anomalia a ser entendida e erradicada, mas antes um aspecto inevitável no processo histórico que envolve as grandes potências.
Assim, o “primeiro grande debate” se destaca na história do campo que, só a partir dos anos 50, vai se consolidando enquanto disciplina acadêmica, capaz de avançar para questões de ordem metodológica, momento que inaugura um segundo grande debate. Sob a denominada revolução behaviorista nas ciências sociais, uma geração de novos estudiosos – com forte influência de áreas como Economia e Ciência Política e clara vocação positivista – substituiria os primeiros pensadores, em geral ligados à área das humanas. Neste contexto, os debates capitaneados em função da metodologia nos estudos de Relações Internacionais vão opor os cientificistas (ou “behavioristas”) aos adeptos de uma abordagem “tradicional” (os “humanistas”). Note-se que o debate metodológico entre behavioristas e humanistas dos anos 1950 terá uma espécie de revival na década de 80, envolvendo positivistas versus pós-positivistas.

Ainda um terceiro grande debate é reconhecido na longa história do desenvolvimento das reflexões acerca das RI. Uma reação contra a corrente realista formaria, a partir dos anos 1970 o denominado “debate interparadigmático”, no qual a noção de “paradigmas” (de Kuhn) substitui o conceito de “teoria”, fazendo coexistir na disciplina de Relações Internacionais as visões de mundo ligadas ao realismo, liberalismo e globalismo. Desta forma, cada paradigma responderia – dentro de sua própria lógica – a questões comuns como os principias temas, atores e processos definidores das relações internacionais.

Atualmente, uma mudança está em curso, mas as visões de diferentes pensadores acerca do campo são divergentes. O certo é que um quarto grande debate está se delineando desde as últimas décadas do século XX, mas há muitos polos de discussão: neorealistas versus neoliberais; racionalistas e construtivistas sociais, configurando uma oposição entre positivismo e pós-positivismo. Já no século XXI novos atores entram em cena para aquecer a cena teórica no campo das Relações Internacionais. A Teoria Crítica, o construtivismo social, as reflexões a partir da questão de gênero, o pós-estruturalismo, pós-colonialismo e finalmente, mas não menos importante, o pós-modernismo.

Desta forma, o espectro das teorias das Relações Internacionais vai se ampliando, ao passo que o próprio campo, enquanto disciplina acadêmica e tema corriqueiro na vida cotidiana de milhares de pessoas, sobretudo através da mídia, não para de crescer. Vale lembrar que as teorias das Relações Internacionais formulam conceitos e métodos fundamentais para a compreensão da natureza e do funcionamento do sistema internacional. Por suas peculiaridades, o espaço internacional e as questões que nele se desenrolam, sem dúvida desafiam os analistas ao encerrar em si uma gama de problemáticas efetivamente distintas daquelas investigadas pelas ciências sociais que dão conta dos processos que ocorrem no espaço doméstico. Por isso, a primeira edição do ano de 2015 da Século XXI – Revista de Relações Internacionais dedica à teoria o merecido espaço em seu Dossiê Temático. Entendemos ser uma bela maneira de marcar a décima edição da Século XXI – uma publicação do Curso de Relações Internacionais da ESPM-Sul e do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Relações Internacionais (NEPRI).

Abrindo a revista e o Dossiê Teoria das Relações Internacionais, o texto “As teorias do desenvolvimento: a propósito dos conceitos de Centro e Periferia”, de Marcos Costa Lima, discute as teorias de desenvolvimento, a partir de um eixo central estruturado sobre os conceitos gêmeos de centro e periferia. Mostrando enorme erudição, o autor discorre sobre as diversas contribuições de autores clássicos no tema, como Rosestein-Rodan, W.W.Rostow, Furtado, Prebish, Perroux, Hirschmann, Gunder Frank entre outros. Em primeiro lugar, cada um dos autores revisitados terá apontadas suas especificidades teóricas – funcionalistas, liberais, institucionalistas e marxistas -, com ênfase para as respectivas abordagens com relação à política.  Como defende Marcos Costa Lima, há uma ampla riqueza teórica sobre desenvolvimento, sobretudo em autores heterodoxos, que criticam o etapismo e introduzem os conceitos de assimetria, dualismo e dependência. Por outro lado, autores propriamente marxistas recusam o desenvolvimentismo, o dualismo, e estabelecem o conceito de imperialismo, de desenvolvimento do subdesenvolvimento, que impediria o desenvolvimento nacional autônomo. O artigo procura atualizar a questão, sobretudo a partir das crises sucessivas do capitalismo, que atingem os países do centro, quando a dinâmica do sistema passa a ser puxada pelos periféricos.

“Notas sobre a Teoria Social da Política Internacional de Alexander Wendt”, de Flavio Elias Riche, analisa com propriedade a teoria de Wendt, tal como disseminada a partir de sua obra referencial, “Social theory of international politics”, considerando ligeiras alterações subsequentes. Flavio Riche ressalta a relevância deste esforço, não apenas pelo impacto do construtivismo wendtiano na teoria das relações internacionais – especialmente em função do contexto proporcionado pelo terceiro grande debate –, mas também pela mudança operada por Wendt a partir da publicação, em 2006, de “Social theory as a Cartesian science: an auto-critique from a quantum perspective”. Neste momento, Wendt faria uma revisão radical de seu pensamento por meio da combinação de princípios da mecânica quântica e de aportes inovadores desenvolvidos a partir das ciências da mente. Riche também destaca a opção por trabalhar de forma mais direta com os textos de Wendt e incidentalmente com obras de comentadores, visando centrar o debate na concepção original da teoria das relações internacionais de Alexander Wendt, de modo a servir de contraste para o desenvolvimento do que denomina de “guinada quântica” em seu pensamento.

No texto intitulado “O Monopólio das Teorias Anglo-Saxãs no Estudo das Relações Internacionais”, Williams Gonçalves e Leonardo Valente Monteiro buscam analisar o estado da arte do estudo das relações internacionais no Brasil, centrando-se especialmente na influência para este campo do que chamam de desmedida dedicação às Teorias das Relações Internacionais. Provocativamente, os autores partem da tese de que o monopólio anglo-saxão de produção teórica nesta área dificulta a construção de uma disciplina com perspectivas nacionais e regionais, “comprometendo sua utilidade para o desenvolvimento, e tornando-a mais um importante instrumento de manutenção do status quo”.  A reflexão empreendida pelos autores também destaca os problemas resultantes da transformação de apenas um olhar teórico sobre as relações internacionais, vendendo um recorde de mundo como a única forma de se entendê-lo. Algumas perguntas são colocadas como um fio condutor para a reflexão: para que serve a teoria? Qual é a utilidade da teoria nas Ciências Sociais e, mais especificamente, qual é a utilidade de uma teoria das Relações Internacionais? Privilegiar o estudo das teorias em detrimento do estudo da realidade faz algum sentido? Assim, Williams Gonçalves e Leonardo Monteiro chamam a atenção para a importância da quebra desses paradigmas e o desenvolvimento de novos modelos teóricos e novas formas de se pensar a disciplina.  

“A diferença que a ontologia faz: Intergovernamentalismo Liberal, Construtivismo e Integração Europeia”, de Fabiano Mielniczuk, explora, por sua vez, o debate entre Intergovernamentalismo Liberal (IL) e Construtivismo sobre as motivações subjacentes ao processo de integração europeia. Após apresentar as posições dos principais autores dessas abordagens, Mielniczuk analisa, de um ponto de vista metateórico, a possibilidade de síntese teórica entre ambas as abordagens. “Assume-se uma postura cética em relação a essa possibilidade, a partir da compreensão de que os pressupostos ontológicos que fundamentam as teorias restringem o emprego de ferramentas epistemológicas para explicar a realidade”, sustenta Mielniczuk. Nesse sentido, conforme defenderá o autor, a síntese baseada na aplicação de uma epistemologia positivista a partir de uma ontologia construtivista é considerada impossível, servindo apenas para enfraquecer a contribuição original do construtivismo para os estudos de integração.

José Antônio Moreira das Neves contribui com o texto “Uma luz no fim do túnel? As possibilidades de integração regional, inspiradas pela indústria elétrica da América do Sul, iluminada pela teoria neo-funcionalista”. O trabalho analisa como a Comunidade Europeia para o Carvão e o Aço (ECSC/ CECA) impulsionou a integração europeia, objetivando verificar o potencial sinérgico para a cooperação que uma eventual instituição supranacional de energia elétrica teria para estimular a integração da América do Sul. A experiência europeia é utilizada pelo autor, “ como um caso de controle e comparação para verificar se as condições de integração ocorridas naquele continente podem se assemelhar com aquelas do processo sul-americano”. José Moreira das Neves utiliza o referencial teórico Neo-funcionalista de Ernst Haas e sua microteoria do spill-over ou desborde, buscando observar se esse tipo de fenômeno pode ser repetido no caso de uma possível constituição de um sistema elétrico integrado na América do Sul. Embora os aspectos sociais, econômicos e políticos sejam diferentes da experiência europeia, sustenta o autor, a pesquisa colheu evidências convergentes e satisfatórias para a formação do spill-over, a partir da eventual integração do setor energético na América do Sul, apontando para a possibilidade de construção de um processo de integração regional que pode ser explicado e inspirado pela teoria Neo-funcionalista.

Fechando o Dossiê Temático da Século XXI, o artigo intitulado “Teoria das Relações Internacionais: do realismo à teoria verde”, de Leonardo Dutra, recupera as principais ideias que construíram e foram resultado da construção de uma ciência da Política Internacional, hoje difundida como Relações Internacionais.  O trabalho inicia com a descrição das primeiras ideias registradas nesta linha de pensamento durante a segunda metade dos anos 1940 que dariam origem a uma Teoria das Relações Internacionais. Em seguida, Leonardo Dutra aborda a complexidade do pensamento destas teorias “desde uma tríade de representações da realidade proposta pela Escola Inglesa das Relações Internacionais”. O florescimento desta perspectiva, sustenta o autor, é contemporâneo aos juízos sobre uma teoria da interdependência e uma abordagem teórica da estrutura do sistema internacional, ambas igualmente apresentadas neste trabalho. Chegando aos anos de 1980 e 1990, o texto aborda as principais críticas sobre o sistema internacional, a nova ordem mundial e, neste âmbito, os temas que se destacam já no século XXI, exemplificados em perspectivas teóricas que apresentam o Póscolonialismo e a Teoria Verde nas Relações Internacionais.

A Seção de Artigos oferece aos leitores a reflexão de Claude Serfati, “O Bloco Transatlântico dos Estados e a Economia Política do Comércio Transatlântico e Parceria de Investimento (TTIP)”. O texto, originalmente escrito em língua inglesa, aborda o que denomina de o “bloco transatlântico hierárquico dos Estados”. O pesquisador associado do Instituto de Pesquisa Social e Econômica e do CEMOTEV (Centre for the Study of Globalisation, Conflicts, Territories and Vulnerabilities) da Universidade de Versailles-SaintQuentin-en-Yvelines, lembra que o espaço do mundo é um espaço politicamente construído e, como tal, dominado pelo grande capital altamente concentrado. A política econômica de globalização é o produto do desenvolvimento desigual e combinado sob a dominação dos países desenvolvidos, definido pelo autor como o “bloco transatlântico”, no centro do qual se encontra os EUA, apoiado por seus antigos aliados políticos e militares na Europa e na Ásia. A partir deste contexto, Claude Serfati analisa o Comércio Transatlântico e Parceria de Investimento - Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP) – e seus principais objetivos, no contexto da atual conjuntura econômica e política mundial. O autor leva em consideração a forte oposição “daqueles que vem de baixo” e as próprias diferenças entre os lados negociantes para uma projeção das possibilidades do TTIP diante dos interesses maiores do capital concentrado. 

A décima edição da Século XXI – Revista de Relações Internacionais dedica assim à Teoria seu merecido espaço, não sem exercer a liberdade e o dever crítico de refletir sobre seu próprio peso. Como de costume, esperamos que nossos leitores aproveitem os trabalhos aqui reunidos e que a reflexão acerca da Teoria das Relações Internacionais possa iluminar nosso campo. Assim, resta apenas desejar uma prazerosa leitura.

1.       AS TEORIAS DO DESENVOLVIMENTO: A PROPÓSITO DOS CONCEITOS DE CENTRO E PERIFERIA

RESUMO: O artigo tem por objetivo tratar das teorias de desenvolvimento, tendo por eixo central os conceitos gêmeos de centro e periferia. Para tanto, discute as diversas contribuições de autores clássicos no tema, como Rosestein-Rodan, W.W.Rostow, Furtado, Prebish, Perroux, Hirschmann, Gunder Frank entre outros, apontando as suas diferenças teóricas – funcionalistas, liberais, institucionalistas e marxistas, salientando suas abordagens com relação à política.  Há uma ampla riqueza teórica sobre desenvolvimento, sobretudo em autores heterodoxos, que criticam o etapismo e introduzem os conceitos de assimetria, dualismo, e dependência. Mas também de autores propriamente marxistas, que recusam o desenvolvimentismo, o dualismo, e estabelecem o conceito de imperialismo, de desenvolvimento do subdesenvolvimento, que impediria o desenvolvimento nacional autônomo. O artigo conclui numa tentativa de atualizar a questão, sobretudo a partir das crises sucessivas do capitalismo, que atingem os países do centro, quando a dinâmica do sistema passa a ser puxada pelos periféricos.

Introduzindo o Conceito

O conceito articulado de centro e periferia, da determinação da posição de determinados entes em um espaço, é largamente utilizado nas ciências sociais, mas também no urbanismo, na física, na história da ciência. No caso da física e no estudo do átomo, sabemos que os elétrons são minúsculas partículas que vagueiam aleatoriamente ao redor do núcleo central do átomo, onde os prótons e nêutrons são as partículas localizadas no interior do núcleo e contêm a maior parte da massa do átomo.

Já no contexto das ciências sociais, o centro nos remete, nos termos do paradigma vigente, às regiões que consolidaram suas hegemonias, não só em termos de produção científica como em termos econômicos, caso da maioria dos países industrializados da Europa, da América do Norte e de alguns países da Ásia.

Já antes do fim da Segunda Guerra Mundial, economistas poloneses, como Kalecki e Rosestein- Rodan2 estavam preocupados com o futuro dos países da Europa Central, de como se daria a superação de capitalismo tardio. Sobre qual seria o futuro dessa periferia.

Para os economistas liberais “neo-clássicos”, o subdesenvolvimento seria um atraso na via real  do capitalismo. W.W.Rostow3, em 1959, estabeleceu a sua “teoria das etapas” do crescimento econômico como sendo um processo universal evolutivo que toda sociedade, necessariamente, passaria. Seriam cinco as etapas do crescimento:  uma sociedade tradicional; passando para um estágio de transição; até alcançar a fase do Take-off ou “arranque”; daí para uma fase “madura”, para  finalmente atingir a era do consumo de massa. Este percurso, que é o próprio percurso do capitalismo, esteve fundado no pressuposto do progresso, enraizado na cultura ocidental, do progresso técnico, tido como neutro e sendo expressão da racionalidade.

A escola cepalina

Uma teorização diferenciada sobre o desenvolvimento foi estabelecida por Raúl Prebish4,  dez anos antes, em 1949. Na introdução que escreveu ao primeiro Estudo Econômico da América Latina “O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de seus principais problemas”, elaborou a tese das “trocas desiguais”, que estruturavam as relações centro-periferia, o que o lançou a secretário Executivo da  Comissão Econômica para a América latina. Em seu livro “Dinâmica do desenvolvimento latino-americano”5, Prebish  analisa o problema do estrangulamento externo da região, e indicava uma debilidade congênita da periferia que era incapaz de reter o fruto de seu progresso técnico. Essas regiões importam manufaturas que aumentam rapidamente, ao passo que suas exportações primárias aumentam lentamente. Esse desequilíbrio só seria superado via industrialização, através de políticas de substituição de importações. Mas a sua interpretação não descura da política, pois não haveria aceleração do desenvolvimento econômico sem transformação da estrutura social. E para ele, a democracia estaria ameaçada sem um processo articulado de distribuição de renda.

Para muitos desenvolvimentistas latino-americanos, uma concepção sociocêntrica do desenvolvimento significaria, sobretudo: (i) recuperar uma visão crítica e de longo prazo; (ii) estabelecer como eixo fundamental o papel do Estado, que assumisse a responsabilidade de contribuir para a definição de uma estratégia nacional de médio e longo prazo, caracterizando o aprofundamento democrático e a superação da pobreza; (iii) centrar na cidadania, ou seja, na criação de uma institucionalidade participativa, que seria efetivada por meio da descentralização, da regionalização, da iniciativa local, o que exigiria como contrapartida uma profunda mudança cultural.

Os desenvolvimentistas haviam percebido a mudança no entendimento do conceito de desenvolvimento através da segunda metade do século XX. As próprias transformações vividas pelo capitalismo e seus efeitos perversos em termos sociais produziram como contrapartida uma sociedade civil que foi adquirindo novas formas de articulação e de ação. Os exemplos são muitos, dos movimentos campesinos, de favelados, étnicos, ambientalistas, de gênero, de jovens, de consumidores, de direitos humanos, justamente entre segmentos tradicionalmente marginalizados, até setores de classe média, que passaram a construir pautas mais abrangentes de reivindicação, caracterizando novos atores sociais não tradicionais. Dentre as reivindicações, temas relacionados à solidariedade, participação, associativismo, com reclamos de um desenvolvimento que não se limite apenas ao crescimento econômico, que não responda a essas novas expectativas. Mas, ao mesmo tempo, o tempo dilatado dos regimes políticos de exceção em muitos países periféricos e as políticas de ajuste estrutural adotadas por exigência do Fundo Monetário Internacional fizeram crescer a adesão entre amplos segmentos das classes altas e médias ao padrão de consumo norte-americano, reforçado pela alienação política.

Um tema que na obra de Celso Furtado6 tem um lugar central é o subdesenvolvimento, um desafio teórico que se empenhou em decifrar. Para ele, o subdesenvolvimento é um processo histórico autônomo, no sentido em que não é uma “etapa” pela qual tenham necessariamente passado as economias que atingiram um grau superior de desenvolvimento. Muito embora reconhecesse essa autonomia como necessária para o aprofundamento e equacionamento do fenômeno, ele também entendia que uma economia subdesenvolvida não deveria ser considerada isoladamente da divisão internacional do trabalho no qual está inserida. Dizia mais, ao reconhecer que em suas raízes o subdesenvolvimento é um fenômeno de dominação, ou seja, de natureza cultural e política.

A Teoria do Desenvolvimento Econômico em sua formulação deve ter por base uma explicação do processo de acumulação de capital. As escolhas e decisões econômicas são políticas e, no entanto, os investimentos e a inversão decididos pelos economistas são tidos como algo sem ambiguidades. Essa suposta “neutralidade axiológica” dos procedimentos da economia positiva não era aceita por Celso Furtado, e seus argumentos e questionamentos são de outra ordem: “Que relações existem entre a estratificação social, os sistemas de dominação e as mudanças que ocorrem em uma sociedade, em decorrência da acumulação? Como integrar o desenvolvimento econômico no processo de mudança social e relacioná-lo com os sistemas de decisão e as estruturas de poder? 7”

Para tratar da condição periférica nos últimos trinta anos, que assiste a uma revolução tecnológica e a um forte e concomitante processo de globalização, é fundamental estabelecer uma articulação entre a techné e as teorias do desenvolvimento8, sobretudo porque a periferia é tributária da inovação e não o seu foco de criatividade.  Nesse sentido, Furtado9 estabelece o conceito de “imperativo tecnológico”, ao admitir que a tendência da globalização seria aquela em que os mercados imporiam a sua lógica e ritmo sobre o espaço econômico mundial.

Na história do capitalismo, prevaleceu a concentração geográfica das atividades industriais nos países centrais e uma repartição de renda mais igualitária nesses países. Seja porque a ação dos trabalhadores organizados e suas lutas redundaram em aumento dos salários reais, exigindo de seus governos políticas protecionistas para a defesa dos mercados internos, seja porque esses países não sofreram o processo colonial. O dinamismo da economia capitalista, assim, provinha da interação de dois fatores: a inovação técnica, que se traduz pelo aumento da produtividade e que em seu desenrolar opera pela redução da procura por mão de obra, e a expansão do mercado, que crescia com o aumento da massa salarial.

É importante assinalar aqui a concepção inerente à lógica de capital, onde o desenvolvimento de uma sociedade não é alheio à sua estrutura social e, mais ainda, que o aumento da eficácia do sistema, em geral apresentado como o principal indicador do desenvolvimento por economistas conservadores, não é condição suficiente para que sejam mais bem satisfeitas as necessidades elementares da população. Tem-se mesmo observado a degradação das condições de vida de uma massa populacional como consequência da introdução de técnicas mais sofisticadas10. Ou seja, não basta o avanço técnico e que o mesmo seja apropriado apenas por alguns grupos sociais. Trata-se, então, de introduzir a questão da qualidade do desenvolvimento, de como o esforço de inovação e de produção tecnológica irá beneficiar o maior número possível de pessoas e não gerar ou reforçar uma estrutura de privilégios.

Uma outra heterodoxia

Há uma ampla riqueza teórica sobre desenvolvimento, sobretudo em autores heterodoxos como François Perroux11; Gunnar Myrdal12e Albert Hirschman13, que criticam o etapismo e falam de assimetrias, dualismo, e dependência. Mas também de autores propriamente marxistas, que recusam o desenvolvimentismo, o dualismo, e introduzem o conceito de imperialismo, do passado colonial, que impediria o desenvolvimento nacional autônomo. É nesse sentido que André Gunder Frank14 vai aprofundar a tese do “desenvolvimento do sub-desenvolvimento”, reforçada por complementações de Samir Amin15 e Arghiri Emmanue16l, que tratam dos mecanismos de acumulação mundial, dos quais só se escapa pela ruptura. A história intelectual da teoria do sistema mundo, atribuída a Immanuel Wallerstein17, mas com aportes de Amin e Frank, tem raízes na sociologia clássica, na política econômica marxista e no pensamento dos teóricos da dependência.

As obras de Amin e Emmanuel  explicitam a dimensão da punção que sofrem os países periféricos, pois os termos de intercâmbio se degradam, as disparidades se perpetuam em função da troca desigual entre eles. Para Amin, a transferência do excedente para o centro, sob formas variadas, é a questão central, e esses mecanismos de acumulação primitiva alimentam a expansão capitalista18.
Para Chase-Dunn19, o moderno Sistema-mundo pode ser entendido estruturalmente como um sistema estratificado, por um lado composto por sociedades centrais que são econômica, cultural e militarmente dominantes, e elas próprias em competição entre si, e por outro, por regiões periféricas e semiperiféricas.  Algumas regiões dependentes foram bem sucedidas em melhorar suas posições com relação à ampla hierarquia centro-periferia, ao passo que a maioria simplesmente não alterou suas posições periféricas e semiperiféricas. Essa perspectiva estrutural na história mundial permite-nos analisar o perfil cíclico da mudança social e o padrão de longo prazo de desenvolvimento em perspectiva histórica e comparativa.

A entrada no Século XXI em termos comparativos mundiais manteve a concepção centro-periferia, quando o núcleo do grande capital internacional não apenas ganhou uma espacialização planetária, mas realizou uma transformação técnico-produtiva radical. A esfera dependente do sistema estrutura e aprofunda a sua dimensão de exportadora de capitais, através do mecanismo permanente de punção da dívida, que articula instabilidade política, social e econômica, sem minimizar a escala predatória do meio ambiente.   

A profundidade das mudanças e sua rapidez transformam a uma só vez a realidade social e as categorias interpretativas. A consolidação da hegemonia financeira, mediada seja pelas Bolsas de Valores, seja pelos Fundos Mútuos e de Pensão passa a redefinir uma nova orientação geoeconômica sob o controle dos Estados Unidos da América. Nesse novo cenário, a América Latina abandona por completo o projeto de desenvolvimento, quer autônomo ou dependente, condicionada agora pela falência financeira que exige o controle não apenas dos sistemas bancários nacionais, através das privatizações, mas dos Estados e de seus instrumentos de intervenção. Como bem afirma Fiori20 (2001:82), “o capital financeiro diluiu e flexibilizou ao máximo as fronteiras variáveis dos seus territórios econômicos, passando de um para outro país e região mundial sem se propor nenhuma fixação permanente, nem muito menos qualquer tipo de projeto ‘civilizatório’ para a periferia do sistema”, o que torna reféns os países da periferia, atados à lógica dos movimentos internacionais do capital e sujeitos aos seus humores e crises.

A discussão teórica e empírica contemporânea, decorrente dos processos de globalização, que incidem sobre as transformações ocorridas no espaço, nas tecnologias, nos processos produtivos, na manutenção das desigualdades sociais, nas dinâmicas regionais, nos territórios, nos fenômenos da metropolização do meio ambiente e no papel do estado, passou a exigir uma abordagem inter, multi e transdisciplinar como condição para enfrentar essas novas realidades e fenômenos. - Como explicar o fato de que as atividades econômicas tendem a se concentrar em um número finito de pontos bem definidos no espaço?  Como explicar as novas hierarquias e centralidades do desenvolvimento?

A Contribuição dos Geógrafos

Do ponto de vista da geografia, os primeiros estudos que procuraram identificar uma estrutura urbana que se organiza em torno de uma dicotomia centro/periferia, com certeza, possuíam uma característica muito mais descritiva do que propriamente teórica ou paradigmática. De uma maneira geral, as constatações empíricas da estruturação urbana e a distribuição/segregação da população em determinadas regiões dentro da cidade puderam ser observadas nos estudos de Georg Simmel e Max Weber, que influenciaram em grande medida as pesquisas desenvolvidas pela Escola de Chicago. Em 1925, Burgess realiza um estudo pioneiro, onde propõe a construção de um modelo analítico que compreende a expansão da cidade através de um ponto central e de diversos círculos concêntricos em direção à periferia e que delimitariam espacialmente as diversas formas de agrupamento social-funcional de uma cidade.

A partir de uma perspectiva funcionalista, tratava a segregação, a dispersão e as desigualdades urbanas sob análises centradas exclusivamente no indivíduo, tendo por base a noção de que as suas decisões de moradia seriam pautadas exclusivamente pelos gostos, preferências e redes de sociabilidade. Tratava-se, portanto, de um reducionismo que fazia da produção social do espaço um mecanismo de racionalidade individual, deixando de lado as variáveis conjunturais e estruturais.
Abordagens diferenciadas e críticas buscavam entender as áreas e espaços urbanos periféricos distantes, precários e desvalorizados no mercado imobiliário, além dos conflitos que ocorriam em razão, por um lado, da violência do status-quo e da marginalização e, por outro, a demanda por assentamentos urbanos por parte das populações pobres, sem acesso a alternativas habitacionais impossibilitadas pelo mercado ou pelo Estado, criando assentamentos “sem ordem nem lei”, irregulares, que se estabeleciam em áreas de mananciais protegidas ou impróprias, reproduzindo as fragilidades e os desastres. Na outra ponta, um centro equipado, valorizado e com grande oferta de empregos e serviços qualificados. É nesse contexto que se dá o confronto entre a propriedade fechada e sem uso aguardando valorização, a possibilidade de moradia de baixo custo, e os projetos de renovação que expulsam a população local de renda mais baixa. Aqui, portanto, diferenciam-se teorias estabelecidas para os países do Norte e do Sul, para regiões avançadas e industriais ou pós, e aquelas regiões de baixo desenvolvimento.  Os desníveis regionais não são apenas fenômenos internacionais, mas também nacionais.

Esforços são realizados no sentido de aprofundar teorias da concentração geográfica da atividade econômica. As cidades são percebidas como lugares onde intercâmbios materiais e imateriais acontecem, onde redes das mais diversas formas e conteúdos se estabelecem em fluxos contínuos, endógenos e exógenos. São lugares onde a inovação acontece, produzindo informação e conhecimento. Mas essas cidades também têm suas redes de hierarquias, estruturadas no sentido centro-periferia.

Atualizando o tema

No período recente, um número crescente de economistas tem voltado sua atenção para esse fenômeno e, num sentido mais amplo, para os seus impactos no que se refere ao desenvolvimento regional. Desde o início dos anos 90, a Nova Geografia Econômica (NGE) tem balizado teoricamente vários estudos sobre as estruturas regionais e urbanas. Como afirmaram Fujita,-Krugman e Mori21, as cidades têm ampliado sua importância como unidades básicas dos sistemas econômicos internacionais.

Desde o final dos anos 1990, a desigualdade de renda, medida pelo coeficiente de Gini, tem aumentado em quase metade dos países em desenvolvimento, mas a tomar os indicadores elencados por Joseph Stiglitz22 em seu último livro, o país mais rico do mundo, os Estados Unidos, também tem ampliado a desigualdade entre a sua população.

O prêmio Nobel23 fala sobre o crescimento da desigualdade de renda e da riqueza nos Estados Unidos nos últimos trinta anos. Diz ele, logo no prefácio, e em tom quase bombástico que “existem momentos na História quando as pessoas em todo o mundo parecem levantar-se para dizer que algo está errado”. Seus dados são contundentes sobre os efeitos de políticas econômicas que geraram desigualdade de renda e riqueza nos Estados Unidos após os anos 1980, que há trinta anos atrás os 1% das maiores rendas entre os americanos recebiam apenas 12% da renda nacional e, em 2007, passaram a perceber 65% do total do ganho nacional dos rendimentos. A renda de um trabalhador masculino típico de tempo integral estagnou por mais de um terço de século.

Como afirmam Dunford e Yeung24, há mais de 200 anos, vêm aumentando, de modo geral, as desigualdades econômicas mundiais. Para os dois autores, o motivo das divergências globais está em que muito poucas economias na busca de modernização econômica e social atingiram um crescimento sustentado. Mais recentemente, a ascensão da Ásia representou um passo importante na reconfiguração do desenvolvimento global, justamente porque uma série emergente de macroeconomias de mercado conseguiu fugir ao Consenso de Washington. Uma das razões para tanto foi, graças à maior integração global, um aumento acentuado na força de trabalho mundial. 

Uma segunda razão, e mais importante, foi o fato de, na Ásia, devido às desvalorizações competitivas, ter alcançado fortes surtos de exportação e a transformação em devedores de uma série de países que, antes, eram credores. O argumento central dos autores é que, com toda a probabilidade, o grupo das economias emergentes, em especial a China, vai sustentar as suas recentes vantagens de crescimento no contexto de um crescimento global, agora com um ritmo mais lento.

No mundo ocidental, um conjunto de estratégias destinado a restaurar o crescimento sustentado tem-se mostrado insuficiente, e a recente crise econômica produzirá um impacto negativo ainda maior e mais renitente no mundo desenvolvido por não haver, no horizonte, qualquer modelo alternativo de crescimento. A China, por seu turno, tem o potencial de sustentar taxas relativamente altas de crescimento ainda por muitos anos. Para isso, ela precisará, no entanto, alterar profundamente o seu modelo de desenvolvimento. Se assim o fizer, e se outras grandes economias asiáticas, em conjunto, talvez, com países como a Índia, a Rússia e o Brasil, que constituem os grupo “BRIC”, continuarem crescendo, esses países emergentes deverão liderar o crescimento mundial. Se assim ocorrer, dentro de 25 anos, a Ásia poderá responder por 66% do PIB mundial. Caso consiga, terá de fato revertido a discrepância criada pela Revolução Industrial, pelo colonialismo e pelo imperialismo. Por certo as desigualdades de renda per capita se manterão ainda por um período maior, mas a relação centroperiferia passará por substantivas alterações.

A crise mundial iniciada em 2008 tem provocado perplexidades e alterações na compreensão dos fenômenos globais. As desigualdades econômicas e de toda a natureza fazem com que ainda 1,57 bilhão de pessoas vivam em estado de “pobreza multidimensional”25. De todo modo, a partir das grandes transformações ocorridas nos países emergentes, liderados pela China, se novas concepções ainda se valem da concepção centro-periferia, com complexidades redobradas, uma questão se impõe: em que medida as realidades contidas no contexto das relações Norte-Sul, ou dos centros e periferias serão alteradas, junto com as suas interpretações?